Tales Frey, sempre tive múltiplos interesses

Tales Frey, sempre tive múltiplos interesses

Olimpia Gaia Martinelli | 5 de ago. de 2023 12 minutos lidos 0 comentários
 

Ainda criança, eu recebi influências muito significativas do âmbito familiar. A minha mãe é professora de Educação Física e, então, a atenção sobre tudo o que diz respeito ao corpo na minha prática artística veio dela sem nenhuma dúvida...

O que te inspirou a criar arte e se tornar um artista? (acontecimentos, sentimentos, experiências...)

Ainda criança, eu recebi influências muito significativas do âmbito familiar. A minha mãe é professora de Educação Física e, então, a atenção sobre tudo o que diz respeito ao corpo na minha prática artística veio dela sem nenhuma dúvida. Ela teve uma academia de ginástica chamada Corpus no final dos anos 80 e início dos 90 e eu via de perto todo o funcionamento do ambiente voltado para as atividades físicas e prestava atenção em tudo daquele contexto. A minha mãe criou um grupo de dança vinculado à academia de ginástica e, inclusive, as minhas duas irmãs dançavam também nesse coletivo, que participava de festivais e demais eventos da área. Como espectador, eu sempre acompanhava tudo e, como filho e irmão caçula, eu estava sempre com as mulheres da casa assistindo a alguns ensaios, acompanhando os processos desde os desenhos de figurinos em papéis, testes de tecidos, até a escolha de músicas, enfim, eu estava de alguma forma presente nas etapas todas: desde os esboços dos croquis até o momento da apresentação da coreografia concebida. E isso tudo certamente me influenciou demais. E, claro que na virada da década de 1980 para 1990, não havia naquele contexto um entendimento sobre as políticas mais inclusivas, então os corpos que ali transitavam eram sempre os hegemônicos e, assim, eu que amaria poder dançar também, não podia frequentar o recinto. Minha mãe era quem fazia tudo e eu estava sempre observando e admirando. Hoje, percebo que componho uma versão mais desvairada dessas vivências. Proponho corpos que retomam (com visão crítica) aquela estética pautada num padrão de beleza da Jane Fonda, mas que despontam delirantes, livres, tidos por estranhos nesse nosso mundo tão normalizante. 

O meu avô era advogado, político progressista, professor de história e geografia, tocava violino, escrevia e recitava poemas próprios em saraus. Eu admirava o desempenho dele, a performance social e artística dele, o modo como ele projetava a voz em público e como fazia observações pertinentes. Embora ele fosse uma pessoa totalmente calma e que quase sempre estava em silêncio, ele não precisava nunca pedir atenção ao iniciar alguma fala, porque as pessoas se interessavam logo pelas suas ideias sempre muito éticas. E eu amava escutar o meu avô; ele era extremamente erudito e tinha interesse por assuntos variados e, no dia em que verbalizei para ele que eu queria fazer teatro, ele imediatamente me incentivou a entrar em algum grupo local e, inclusive, indicou algumas faculdades de artes cênicas.

Qual é a sua formação artística, as técnicas e temas que experimentou até agora?

Eu sempre tive interesses múltiplos e, com apenas 11 anos, comecei a fazer teatro amador em Catanduva-SP. Tinha muito interesse pela interpretação, encenação, indumento, luz, cenário, contrarregragem, sonoplastia, entre outras coisas. Não tinha nem vinte anos e já tinha trabalhado como ator, iluminador e cenógrafo em diversas montagens locais. Em 2003, decidi fazer faculdade de Artes Cênicas e, então, ingressei na graduação em Direção Teatral na UFRJ no Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, cumpria disciplinas do curso de Indumentária, para o qual pedi reingresso assim que concluí a Direção Teatral. Gradativamente, percebia o meu interesse sendo muito transdisciplinar. Realizava cursos livres e estágios ao mesmo tempo. Fazia iniciação científica no Museu da Vida na Fiocruz na área de interpretação, estágio de indumentária numa escola de samba de segundo grupo e ainda arranjava tempo para fazer workshops no SESC Copacabana, em instituições de ensino superior em diversas áreas, até acrobacia aérea na Intrépida Trupe. Trabalhava com adereço para o Miguel Falabella e Cláudio Tovar em um musical que ficou um ano em cartaz no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro, onde sempre fazia reajustes dos adereços de figurino e cenário. 

Em 2008, fiz parte da equipe de direção de um espetáculo dirigido por Antonio Abujamra na Funarte em São Paulo. Ali, surgiu um fascínio pela dramaturgia também. Então, quase pronto para entrar para o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral do Antunes Filho, optei por fazer mestrado em Teoria e Crítica de Arte na Faculdade de Belas Artes da cidade do Porto em Portugal e saí do Brasil, mas sem nunca perder o vínculo com o país. 

Eu já tinha interesse pelas artes visuais e, quando iniciei a minha pesquisa de mestrado, consistindo num curso tão teórico e não tendo muito amparo institucional para apresentar as minhas criações autorais em Portugal, encontrei no espaço urbano um ambiente muito eficaz para experimentar algumas ações de performance, que eram sempre documentadas. Destaco aqui que já praticava performance desde 2003, mas só em 2006 é que realizei a primeira ação com consciência do que era esse gênero artístico e, somente em 2008, é que passei a ter a performance como principal meio de expressão. 

E concomitantemente com o meu doutorado em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra – iniciado em 2010 – eu e a Hilda de Paulo decidimos ter uma revista especializada em performance que não excluísse textos que não se encaixassem num formato acadêmico ortodoxo e, assim, nasceu a revista Performatus em 2012. Queríamos uma revista que abarcasse também as escritas mais livres sobre prática artística e, através da revista, iniciamos a nossa coleção particular de obras de arte e os nossos primeiros passos na curadoria e organização de eventos. 

De tantos interesses que poderiam ser dispersos, assimilei finalmente como a performance é o meio de junção do meu interesse pelas artes cênicas e visuais também e, ainda, por outras áreas do conhecimento humano. Então, eu me vinculei à Universidade do Minho em grupos de investigação e, também, em um pós-doutorado. Hoje sou professor nessa universidade e, felizmente, leciono disciplinas que permitem a confluência de diversas áreas. 


Quais são os 3 aspectos que o diferenciam de outros artistas, tornando seu trabalho único?

Minhas criações têm sensualidade, sensorialidade e erotismo sempre completamente comprometidas como uma forma ético-política de fazer arte, portanto são sempre discursos inegavelmente políticos conjugados com exercícios estéticos.  

De onde vem sua inspiração?

Constantemente, eu vivo sob o exercício pleno de escuta do ambiente em que eu habito para então perceber como um corpo é um estado provisório de uma complexa coleção de informações do presente em que ele está inserido. Eu posso dizer assim que tudo ao meu redor é inspiração para mim uma vez que o corpo, a identidade e suas subjetivações são assuntos centrais da minha prática que inevitavelmente é autobiográfica. Ressalto que o aspecto autobiográfico acaba sempre surgindo nas minhas criações. Inclusive, por eu ter a performance como um meio de expressão extremamente relevante na minha prática, isso acaba por ser sublinhado, porque a performance é um gênero em que inevitavelmente o self do artista é frequentemente exposto.

Qual é a sua abordagem artística? Que visões, sensações ou sentimentos você deseja evocar no espectador?

Eu relaciono diferentes vivências que provocam constantes alterações em mim e essas minhas narrativas (a partir das minhas vivências) podem servir para outras pessoas ou não. Mas o que me interessa em arte é produzir conhecimento a partir das assimilações que eu faço sobre o mundo. E afetar direta ou indiretamente quem acessa o meu trabalho.

Tem uma ideia ecoando em mim de que quando a gente nota que um determinado corpo foi alterado, quer dizer que que tudo ao redor já foi transformado, porque o corpo é um poderoso indicador das modificações em andamento numa sociedade. O corpo é um revelador de contextos. Então, obviamente as minhas concepções em arte (através de vídeos, de performances, de indumentos e de adornos conceituais e performativos, que são ativados por meio de instruções ou não) são respostas, são comentários sobre tudo que está ao meu redor e que me afeta de modos variados dentro dessa cultura ocidental numa era alucinantemente hiperindustrializada.

Seja no Brasil ou em Portugal ou em qualquer outro país que eu tenho sempre trabalhado (até nos lugares mais longínquos como Nova Zelândia e Islândia), eu vivo numa estrutura inegavelmente colonialista e cisheteronormativa (por mais avançada que seja considerada uma sociedade). O falo e o logos ainda ocupam lugar de privilégio na maior parte do mundo (falo maior parte já sendo muito otimista) e essa estrutura dominante ainda subalterniza o nosso desejo, negando as diferenças e estruturando corpos de acordo com padrões estéticos e comportamentais... Como se nós estivéssemos saindo de uma mesma fábrica e repetindo padrões que são ditados por regimes completamente opressores.

E, assim, refletindo sobre os corpos e as diferentes singularidades, eu crio subversões para desestabilizar ideias dominantes. E essas subversões podem ser insolentes ou podem criar harmonias completamente lúdicas.

Como é o processo de criação de suas obras? Espontâneo ou com um longo processo preparatório (técnico, inspiração em clássicos da arte ou outros)?

Geralmente o meu processo é muito intuitivo. E quando uma imagem começa a ocupar o meu imaginário, eu começo a refletir sobre a tal imagem e, assim, vou percebendo se vale a pena materializar a ideia ou não. Se há algum método que pratico com frequência, posso dizer que é o da escrita crítica, porque antes de concretizar alguma ideia que me ocorre, eu faço apontamentos como se fosse escrever uma crítica de arte de um trabalho que não é meu e, assim, consigo avaliar a ideia de modo mais distanciado.

Você utiliza alguma técnica de trabalho específica? em caso afirmativo, você pode explicar isso?

Eu não sou propriamente um artista da técnica, porque tenho interesses muito variados. Tenho formação em teatro e estudo há muito tempo arte da performance e, embora a performatividade esteja muito presente na minha prática, eu experimento linguagens sobre as quais não tenho muito domínio da técnica. Meus desenhos são muito simples e, então, comecei a projetá-los para recortes em acrílico, para formas em néon, para configurações têxteis, ou seja, apresento meus desenhos em superfícies que não sejam apenas a do papel. A escultura que crio é atravessada pelo vestuário, pelo cinetismo tão característico das artes cênicas e nunca acontece de modo tradicional.

Há aspectos inovadores em seu trabalho? Você pode nos dizer quais?

Não sei dizer se são aspectos inovadores, mas posso garantir que são coerentes dentro da minha trajetória. Há algo muito particular que vejo em algumas criações minhas, mais especificamente em indumentos utilizados em situações performativas que também possuem autonomia para serem exibidos como objetos e esculturas independentemente de um corpo associado. Outro aspecto que pode me diferenciar de uma prática mais convencional de desenho é que meus traços são transpostos para recortes em superfícies rígidas e reluzentes (acrílico, néon etc) e muitas vezes têm cinetismo com auxílio de motores.

Você tem um formato ou meio com o qual se sente mais confortável? se sim, por quê?

A performance é meu principal meio de expressão artística. Estou há quase 30 anos nas artes cênicas, logo esse é um meio mais seguro para mim, porque domino bem as técnicas e os conceitos relacionados à arte ao vivo.  

Onde você produz seus trabalhos? Em casa, numa oficina partilhada ou na sua própria oficina? E nesse espaço, como você organiza seu trabalho criativo?

Eu produzo parte em casa, parte no meu próprio ateliê e, quase sempre, em contextos de residências artísticas ou de processos criativos em instituições com prazos definidos.  Tanto em casa como no ateliê, eu gosto de organizar tudo por cor e setorizo os itens como se estivesse em uma loja de departamentos, porque preciso controlar tudo com mais facilidade e, dessa forma, tendo o espaço obsessivamente arranjado, eu sei exatamente onde cada item está.

Seu trabalho o leva a viajar para conhecer novos colecionadores, para feiras ou exposições? Se sim, o que isso traz para você?

Isso é algo que amo no meu trabalho. A minha prática me levou para muitos lugares do mundo, possibilitando que eu conhecesse profissionais e pessoas atreladas ao circuito de arte, mas igualmente relevante foi poder ter acesso a outras culturas. É interessante que, quanto mais eu viajo com o meu trabalho, mais entendo que existem inúmeros circuitos artísticos e isso me faz viver sempre como se eu estivesse descobrindo coisas novas, como se houvesse sempre caminhos variados pela frente.

Como você imagina a evolução do seu trabalho e da sua carreira como artista no futuro?

Acho difícil responder pensando num futuro muito distante, mas projetando meus desejos atuais ainda não realizados, vejo a minha prática caminhando para escalas maiores, mais escultóricas, mais instalativas, interativas e sonoras.

Qual é o tema, estilo ou técnica de sua última produção artística?

Minha última produção artística foi um retorno para a black box, encenando um espetáculo chamado “Amálgama”. Esse regresso ao ambiente do teatro está sendo primoroso, porque já faço com olhar tanto de artista cênico como de artista visual e, assim, eu me sinto totalmente livre para criar proposições híbridas não restritas aos compromissos categorizantes.

O trabalho veio de uma tentativa de elaborar uma solução estética capaz de harmonizar doze singularidades distintas em um convívio que pudesse ser uma analogia sobre o viver em uma democracia, considerando repertórios culturais e desejos dissemelhantes. A criação é afirmada como como um encontro emancipatório em que o conceito de género não pode ser restrito às exigências da cisheteronorma que, compulsoriamente, impõe um limitado par masculino/feminino. Em movimento de negação de categorias universalizantes, criei um emaranhado de trajes e acessórios com corpos e, assim, muitas identidades instáveis são erigidas, revelando sujeitos voláteis como constructos performativos, sustentando a identidade de gênero como uma sequência de atos. 


Você pode nos contar sobre sua experiência mais importante em exposições?

Poderia enumerar muitas experiências, mas acho que a minha participação na BienalSur – Bienal Internacional de Arte Contemporáneo del Sur de 2019 foi extremamente importante para mim, onde exibi a minha obra “Estar a Par” (2017) em uma sala onde só havia duas peças: a minha e a icônica obra “Metamorfose” (1976) do Michelangelo Pistoletto.

Se você pudesse criar uma obra famosa na história da arte, qual você escolheria? E porque?

“Túnel” (1973) da Lygia Clark é uma peça que me fascina. A partir de algo muito simples, algo esteticamente arrojado é ostentado. É um simples tubo de tecido elástico de 50 metros de comprimento em que a audiência pode entrar e atravessar. As formas são lindíssimas e irrepetíveis, porque estão sempre condicionadas a cada vivência específica. E o que acho mais deslumbrante é o aspecto ritualístico do trabalho, porque inegavelmente quem atravessa o túnel não sai do mesmo modo que entrou, ou seja, há uma eficácia transformadora nessa obra.

Se você pudesse convidar um artista famoso (vivo ou morto) para jantar, quem seria? Como você sugeriria que ele passasse a noite?

Amaria conhecer a Márcia X. Se estivesse com ela, iria propor um jantar informal para nos prepararmos para uma noite alucinante no Madame Satã em São Paulo.



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