VAMOS DANÇAR ! (2022) Colagens de Dominique Kerkhove (DomKcollage).
Da literatura à pintura à poesia...
"É fácil para um negro 'passar' por branco. Mas não acho que seja tão fácil para um branco 'passar' por negro."
Essas palavras, datadas de 1929, mas, infelizmente e inaceitavelmente, ainda em parte muito atuais, foram escritas por Nella Larsen no romance Passing, obra em que, por meio desse mesmo termo, a obsessão americana pela "linha de cor ", ou aquela fronteira imaginária, que, na cabeça dos emuladores mais racistas, conservadores ou simplesmente estúpidos das "maiorias", separava a fronteira entre brancos e negros, excluindo estes últimos da vida política e social da época, foi analisado. Trazendo ainda mais clareza a esse respeito, vale ressaltar que, na época do escritor, o tratamento discriminatório era assumido de forma indiscriminada, ou seja, para quem tivesse uma única gota de sangue negro em sua composição genética. A tal racismo muitos mulatos responderam justamente com o fenômeno de que o título do livro relata, que, definido justamente como "passagem", representava um costume segundo o qual era possível decidir cruzar a linha da cor para se definir como branco , aceitando, com isso, conhecer um outro "ambiente", que de forma não inteiramente estranha, mas nem tão amigável, levava "o candidato" a não saber mais bem como falar sobre suas origens e, consequentemente, sobre si mesmo. Embora a tendência em questão servisse como uma forma de escapar da segregação, ela trazia certas desvantagens, na medida em que, aqueles que haviam conseguido ser brancos, ao se depararem com pessoas de cor, agora reconheciam que pertenciam a outra facção , no qual, porém, eles nem mesmo acreditavam com tanto fervor. São estes os sentimentos que uma das protagonistas do livro, nomeadamente Irene Redfiled, gostaria de ouvir da sua amiga Clare, uma mulher de pele clara de raízes afro-americanas, que, precisamente através do referido fenómeno da "passagem", conseguiu aparecer branca não apenas aos olhos da sociedade que ela frequentava, mas também aos olhos de um marido profundamente racista.
SAME (2019)Pintura do artista Ztn.
Neste ponto, para dar a imagem de tal união, passemos da literatura à história da arte, onde o romance de Larsen parece continuar no ponto de vista expresso, cerca de trinta anos depois, pela pintura de Jacob Lawrence, que, intitulada Taboo (1963), é uma das muitas obras criadas pelo artista durante o movimento pelos direitos civis, com o objetivo de expressar, por meio da representação de dois casais mistos que pretendem se casar, toda a aversão do mestre aos tabus relativos ao casamento entre pessoas de diferentes raças. Esse propósito de denúncia precisa ser contextualizado dentro da cultura estadunidense da época, que, principalmente no Sul, ainda se inclinava a manter leis antimiscigenação, o que tornava o referido ato não apenas uma transgressão no plano social, mas também uma crime real. Ainda sobre o casamento, uma obra posterior do mesmo artista, intitulada Sonhos n. um homem e uma mulher de tez avermelhada realmente ficam felizes em celebrar sua união, que se deu nos meandros da mente da figura que posa em primeiro plano. De certo modo, o inconsciente da protagonista da têmpera, com razão, sente-se pronto para superar as barreiras raciais de sua época, reconhecendo-se como parte de um todo, que se enriquece justamente pela presença dessa tão temida diversidade. É justamente esse último pensamento, então, que me faz pensar na aceitação mais total dos muitos tons de pele, expressa pela garota bicolor "despreocupada" do quadro La Baker (1977), de Loïs Mailou Jones, uma pintora, cuja obra se inspirou em grande parte nas tradições francesa, haitiana e africana, bem como na do seu país natal, nomeadamente a Nova Inglaterra, região do nordeste dos Estados Unidos da América, onde a artista se formou e se expressou, exteriorizando uma visão de mundo altamente pessoal, destinada a narrar um ponto de vista complexo veiculado por formas estilizadas, cores ricas e uma bidimensionalidade concisa, com o objetivo de fugir, de forma predominante, dos objetivos da narrativa política e propagandística.
DANÇA CONTRA O RACISMO (1990)Pintura de Pierre Peytavin.
No que diz respeito à referida obra de 1977, porém, ela, além de refletir amplamente as peculiaridades estilísticas acima enunciadas, pretende citar e celebrar, tal como em seu título, a figura de Josephine Baker, a primeira mulher afrodescendente, que, por estrelando um grande filme, tornou-se uma artista de renome mundial e uma fonte inesquecível de inspiração para gerações inteiras de mulheres afro-americanas. Ainda no tema do orgulho identitário, a própria mestra reivindicou a importância de suas origens em Ubi Girl from Tai Region, pintura em que uma jovem, com a intenção de olhar para o espectador através das fendas de suas pálpebras semicerradas, apresenta o rosto típico decorado com as cores do ritual de iniciação à feminilidade na região de Tai, na Costa do Marfim, local que Jones visitara durante uma longa viagem à África em busca de suas raízes, episódio acompanhado de coração pelo desejo de chegar a um arte afro-americana liberada, ou seja, mais ousada, ousada, identitária e extremamente intimista. Além disso, através de suas estadas no referido continente, a pintora tomou conhecimento de uma triste verdade, qual seja, a existência de uma experiência compartilhada, que, referida pelo termo Negritude, foi capaz de unir os acontecimentos das nações africanas em desenvolvimento, recentemente exilado da independência, com as lutas afins pela desigualdade dos afro-americanos. Voltando por um momento a La Baker, tal pintura pode encontrar sua "alma gêmea" em Marian Anderson, uma pintura a óleo de 1945 de William H. Johnson, destinada a celebrar, conforme o título, outra mulher negra proeminente, conhecida por ter foi uma popular contralto de ópera espiritual e gospel, cujo talento superou as barreiras raciais levando-a, inclusive, a cantar no primeiro inacessível Lincoln Memorial em 1939.
NATUREZA-MORTA COM MÁSCARA AFRICANA (2020)Pintura de Galya Didur.
LOUIS (2021)Colagens de Olivier Bouvard.
É precisamente com esta última obra-prima que aterramos, por um momento, no mundo da música gospel, recordando que ela remonta ao século XVII, época em que os escravos negros eram trazidos de África para a América, contexto em que as próprias notas tornaram-se um agente calmante para aliviar seu sofrimento. No entanto, a ligação entre música e racismo também foi seguida no jazz posterior, tanto que um dos músicos mais famosos do século XX, como Louis Daniel Armstrong, afirmou sem hesitar: "Há muita gente decente que vire a esquina e linche um negro" [...] "Mas enquanto eles ouvem nossa música, eles não pensam nessas coisas." Atestam estas duras palavras todas as dificuldades que os biógrafos da época recordam no momento em que, mesmo no caso do famoso trompetista, encontrou, em algumas ocasiões, consideráveis dificuldades na organização da sua digressão, pois muitas vezes desconsiderava o facto de ficar alojado em um hotel pode ser problemático por causa da cor de sua pele. Neste contexto, é impossível não imaginar Louis Daniel Armstrong empenhado em guardar o seu fiel trompete nas mãos, talvez sorrindo ao pensar que, felizmente, as estrelas negras de hoje não têm de enfrentar a provação da sua época, sem dúvida graças a parte de sua inestimável contribuição. Esta imagem positiva ganha literalmente forma na colagem, feita com a engenhosa "assemblage" de têxteis, do artista Artmajeur Olivier Bouvard, cujo tema nos remete para um tema fundamental da história da arte, nomeadamente o das trombetas do Juízo Final, que, no contexto da arte afro-americana, é bem exemplificado por Aaron Douglas' The Judgment Day (1939). É precisamente esta última obra-prima, concebida pelo mestre mais de uma década depois de ter criado a ilustração em que se baseia a própria pintura, nomeadamente a colecção de poemas God's Trombones: Seven Negro Sermons in Verse, de Weldon Johnson, que revela reminiscências de um estilo visado em fundir as tendências do modernismo europeu com a arte africana. Em todo caso, para sermos mais precisos, vale explicar como as imagens do referido volume foram todas reinterpretadas em grandes óleos, o que no caso de O Juízo Final resultou em uma composição tendo como tema principal um negro Gabriel, que, com uma chave na mão, pretende tocar uma trombeta como Armstrong, a fim de chamar os vivos e os mortos que serão julgados dentro do contexto apocalíptico. Neste ponto, é impossível não referir uma das mais conhecidas interpretações do Livro do Apocalipse, como a de Albrecht Dürer, versão em que os acontecimentos referidos são, no entanto, descritos por duas xilogravuras diferentes: Os Sete Anjos com as Trombetas, onde os anjos músicos estão em maior número, e o Anjo com a Chave do Abismo, no qual se acrescenta a presença infalível do demônio.
MÚSICOS DE JAZZ DE RUA (2022)Pintura de Giuseppe Valia.
Voltando mais uma vez ao ponto de partida, ou seja, à dimensão musical, são muitas as obras de artistas afro-americanos que visam celebrar o mundo do jazz e da improvisação caseira, como, por exemplo, Out chorus (1979-89) de Romare Bearden , Can't sleep at night (1932) e No easy riders (1948-50) de Palmer Hayden. Relativamente a este último mestre, importa interpretar a sua obra à luz do seu percurso criativo e pessoal, pois após viver em Paris de 1927 a 1932, regressou a Nova Iorque e passou da representação de marinhas para uma investigação artística puramente centrada sobre a externalização da identidade afro-americana. Esta última dimensão foi explorada não só através de uma análise cuidada das manifestações musicais, mas também através de um enfoque cuidadoso, que, projectado nas danças e máscaras tradicionais africanas, deve ser entendido como pura manifestação da consciência das suas raízes. Voltando às obras que retratam músicos em interiores, tais personagens poderiam se encaixar na interpretação encabeçada pelas pinturas, que, feitas pelo mesmo artista, eternizam cenas da vida familiar, pois quem toca música também está rodeado de vizinhos, amigos e familiares membros, com o objetivo de celebrar o valor do núcleo de pertença como uma unidade coerente em contínua expansão. De facto, neste mesmo contexto, a música surge como um aglutinante, capaz de fortalecer os referidos laços, canalizando-os para uma dimensão comum, onde se vislumbra uma percepção inequívoca do mundo, intenções e valores. Por outro lado, falando do mundo da arte contemporânea, o jazz transporta-nos, desta vez, para o “interior” de um cenário exterior, que visa ganhar vida na tela do artista da Artmajeur, Giuseppe Valia, que, de uma forma bastante " imprudente", quis colocar os protagonistas de sua obra no centro de uma rua, via de comunicação também visível através das transparências surreais relatadas pelos próprios corpos dos objetos e personagens.
WEST HARLEM NYC (2019) Pintura de Helene.
Finalmente, é hora de revelar a você qual é o fio condutor que liga todas as conhecidas obras-primas mencionadas nesta longa narrativa figurativa, que acontecem, como o título da pintura West Harlem NYC da artista Helene of Artmajeur deixa explícito, no conhecido bairro de Manhattan conhecido por ser um importante centro cultural e comercial dos afro-americanos. Foi neste último local que ocorreu o Harlem Renaissance, um renascimento intelectual e cultural que abrangeu a expressão musical, a dança, a arte, o teatro, a literatura, a política e a moda, do qual fizeram parte todos os célebres mestres acima investigados, justamente na década de 1920. e 1930 do século XX. Tal fervor artístico e intelectual foi acompanhado, como já vimos, por uma renovada militância na luta geral pelos direitos civis, que, no contexto do aniversário do Mês da Consciência Negra, merece ser lembrado, celebrado, valorizado, promovido, e nunca esquecido também através das obras reais de Artmajeur.