Sobre a galeria
O Alentejo, mais precisamente o Concelho de Odemira, recebeu e aloja um grande grupo de artistas, nacionais e estrangeiros que mais ou menos dispersos desenvolvem o seu trabalho. Lutam com algumas dificuldades para divulgar e aceder ao público em geral e ao mercado da arte em particular. A Associação denominada “Sopa dos Artistas” nasceu do encontro de alguns artistas que se congregam, com os seus pares, a fim de conferir visibilidade às actividades artísticas que desenvolviam isoladamente. O encontro nos seus espaços individuais e a identificação comum com o objectivo fundamental de criação e divulgação artística conduziu às reuniões em torno da mesa onde se delinearam estratégias, definiram estatutos e se condimentaram as sopas de que tomaram o nome.
Temos por objectivo dinamizar as artes plásticas organizando exposições, Workshops, colóquios, ateliers, feiras, tertúlias, e espectáculos, proporcionando à população em geral, e aos estudantes, em particular, actividades artístico -culturais das quais, se encontra esta região tão carenciada.
Linha artística
Sopa de amigos
Uma sopa é, por definição, uma mistura de diversos ingredientes, supostamente naturais. Mas não uma mistura qualquer: numa boa sopa as correctas proporções das partes são fundamentais para o êxito do todo. Além deste considerando, é crença generalizada que para uma boa sopa muito conta a qualidade dos ingredientes. Faça-se uma sopa com batatas e legumes normalizados, desventrados da sua essência natural, inundados de químicos para os maquilhar e preservar dos bichinhos a que despertam o apetite, clonados de um original de bom aspecto exterior mas com sabor a água destilada, quando não a uma massa inerte e desodorizada, e prove-se o resultado... E eis porque cozinhar uma boa sopa está longe de estar ao alcance de qualquer um. A minha avó Amália, que foi a minha mestra gastronómica para o resto da vida, e que cozinhava fartas sopas alentejanas, dizia-me que “para cozinhar uma boa sopa era preciso ter mãozinhas de artista.”
E chegamos à Sopa dos Artistas, associação activa no Concelho de Odemira. Que é uma boa sopa: bons e naturais ingredientes, verdadeiros e personalizados, longe da normalização indesejável, juntos numa correcta proporção. Pelo menos assim o é na maior parte das suas exposições. É claro que tudo isto não deixa de ser diferente para quem a vai provar: há quem goste de sopas fortes que nos inundam de sabores e odores e nos dão murros no estômago, e há quem prefira sopas sublimes e leves que se evaporam directamente do céu da boca para os cantos recônditos da alma; há quem nelas procure o sabor da terra e quem nelas queira atingir os céus. Entenda-se que assim sendo, é muito difícil fazer uma Sopa de Artistas. Mais difícil que a Sopa dos Artistas.
Tenho um amigo que me pergunta sempre quando é a próxima exposição da Sopa dos Artistas, onde além da arte podemos apreciar uma concreta, variada e única sopa. Quem costuma ir a estas exposições talvez já o tenha visto: é um fulano magríssimo, rosto anguloso, roupas de trapos a dar para o andrajoso, sempre agarrado a um cajado grosseiro e desusado. Costuma segurar o corpo contra o cajado e olhar fixamente para as obras de arte. Demoradamente, como se fosse um homem-estátua. A sua figura até já foi confundida com uma instalação hiper-realista. Este meu amigo, que palmilha quilómetros de propósito para vir à Sopa dos Artistas chama-se José Cabral. Mas desde o liceu que é conhecido, entre os mais próximos, por Zé Frugal. Está claro porquê: o Zé Frugal praticamente não come. Aliás, o Zé Frugal parece ter abandonado todos os prazeres materiais. Vive do ar e da fruição da arte e da natureza. Quando me vê comer ou beber, o Zé mira-me com um olhar de pena e repreensão pelos meus pecados do corpo. Não me surpreenderia se um dia me viessem dizer que o Zé tinha entrado para um convento, tal a sua propensão para a exclusiva contemplação do mundo.
Tenho um outro amigo que não suporta o Zé Frugal, e que é o seu oposto. Por ironia do destino também se chama José e também é conhecido por um apelido alternativo. De nome registado José Guerreiro, que é, provavelmente, o nome masculino mais comum no concelho de Odemira. Talvez por isso é mais conhecido por outro nome: Zé Pançinha. O Zé Pançinha é o homem mais talentoso que eu conheci a fazer malabarismos com o palito na boca. Está sempre de palito na boca e de nódoas de gordura na camisa. Uma vez levei-o à Sopa dos Artistas e despachou três sopas em menos de um instante. Apreciou-as e enalteceu-as. Já o resto da exposição não lhe agradou: denegriu as obras e blafesmou-as com a serenidade que o caracteriza e utilizando adjectivos tão depreciativos que, felizmente, o Thomas Wimmer (o único dos artistas que as escutou), não entendeu o seu significado em português corrente. Mas desde então tornou-se habitual vê-lo na Sopa dos Artistas. É, aliás, um dos clientes mais assíduos das sopas e dos copos de vinho, que suspeito se contem entre as maiores receitas da Sopa dos Artistas.
Tal como o Zé Pançinha desdenhava das obras de arte, também o Zé Frugal ignorava a sopa. Quando passava junto ao caldeirão das ditas, fitava-o por cima do ombro e um tanto escandalizado, assim como se fosse um prior a olhar para uma pin-up.
Ora numa Faceco, na tendinha da Sopa dos Artistas, o Zé Pancinha, particularmente entusiasmado com uma sopa de osgas, lá confessou que até gostava de alguns quadros. Era o primeiro passo. E daí às primeiras aquisições foi um saltinho. Era o caminho da sopa para a arte.
E na última exposição fui dar com o Zé Frugal sentado nos degraus da sala, cajado a descansar, a devorar, extasiado, uma sopa. Dir-se-ia, pela avidez, que nunca comera na vida (e se calhar...). Parecia um inventor perante a última grande descoberta. “Então, Zé?” perguntei-lhe, admirado. O Zé Frugal olhou-me e sorriu: “é que para fazer uma boa sopa são precisas mãozinhas de artista”.
Fernando Évora