"MÉMOIRES RUPESTRES" (2008)Pintura de Jeannine Martin.
Arte rupestre: significados
Por que razão surgiu a expressão artística? Por que a causa pela qual surgiu nos faz perceber como a própria natureza humana permanece imutável? É de facto inegável como a arte é capaz de cristalizar a humanidade nas suas diferentes fases evolutivas, que, sempre e em todo o caso, exteriorizaram, ainda que com grande variabilidade de expressão e de representação da realidade, uma determinada visão do mundo, por si só ligada a crenças ou ideais de tipo religioso, político, cultural, etc., nos quais o homem sempre teve que se apoiar, tanto para expressar a consistência do seu ser como para se relacionar com a comunidade de indivíduos que fazem parte do seu próprio momento histórico. Tomemos um exemplo: a Mona Lisa, se tivesse sido criada hoje, provavelmente teria passado despercebida, porque foi concebida como um simples retrato, numa época em que o meio de pintura já se desligou em grande parte da necessidade de representar fielmente na realidade. Na época de sua criação, porém, a obra-prima chegou a ser adquirida por Francisco I de França, por ser reconhecida como um potencial emblema da cultura renascentista italiana, bem exemplificada pela técnica do sfumato e pelo uso da perspectiva aérea. Hoje, apesar das múltiplas abordagens artísticas, certamente ditadas por diferentes propósitos da arte, espelho do ser e da realidade em que se manifesta, a Mona Lisa continua a ser um legado necessário, ou seja, um símbolo precioso do homem do passado , à qual é necessário necessariamente fazer referência, para podermos criar continuidade com o presente, dando formas coerentes aos movimentos da alma contemporânea. É precisamente neste último que se realiza a síntese e a constante, que visa unir o homem de todas as idades, que, basicamente, sempre viveu procurou expressar e sintetizar o seu momento exterior e interior, através da pintura, da escultura, etc. No caso das pinturas rupestres, elas pareceriam manifestar o desejo humano de exteriorizar rituais de iniciação, mas também magias de caça utilitárias, capazes de aumentar a abundância de presas, bem como moldar imagens prospectivas, nas quais o caçador era consciente dos perigos que ele sabia que teria de enfrentar para conseguir comida. Além disso, outra teoria, desenvolvida pelo arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams, veria essas pinturas como obras de xamãs paleolíticos, pessoas que foram capazes de se retirar para a escuridão das cavernas para entrar num estado de transe, o que os estimulou a pintam imagens de suas visões, talvez com a ideia de extrair poder das próprias paredes da caverna. Finalmente, alguns dos estudos mais recentes parecem interpretar as pinturas rupestres como exteriores ao ciclo de acasalamento dos animais, o que, de acordo com o calendário lunar, as tornaria a primeira evidência conhecida de um sistema de protoescrita, capaz de explicando o assunto de muitos trabalhos semelhantes. Concluindo, é bom destacar como as pinturas rupestres em questão, a serem chamadas de arte mural de origem pré-histórica, colocadas nas paredes ou tetos das cavernas, permanecem, como a Mona Lisa, vivas na memória da história da arte, reaparecendo, com novas formas, na linguagem de nomes como Giuseppe Penone, Pablo Picasso, Pierre Soulages e Banksy.
"TRIBE-I" (2021)Escultura de Mahesh Anjarlekar.
"FAUVISME RUPESTRE" (2022)Pintura de Jean-Luc Lopez.
Giuseppe Penone: o espaço da caverna
As cavernas eram os locais onde os humanos pré-históricos se abrigavam, referindo-se a um ambiente escuro onde os sons podiam ressoar, mas a chuva não conseguia molhá-los, embora predadores vorazes ainda conseguissem se aproximar. Foi provavelmente esta imagem antiga que inspirou a instalação, intitulada Sculture di Linfa (2007), de Giuseppe Penone, artista e escultor italiano nascido em 1947, que a criou por ocasião da Bienal de Veneza de 2007, evento em que deu molda o seu desejo de concretizar o referido ambiente, reproduzindo-o através da utilização de materiais naturais manipulados, capazes de levar o espectador a viver uma experiência bastante primordial, tanto visual, olfactiva e táctil.
Pablo Picasso: os sujeitos
Se pensarmos na arte rupestre lembramo-nos, em primeiro lugar, entre outras, das recorrentes imagens de animais, que, como acima referido, nada mais são do que manifestos de uma maior proximidade com a natureza, a estarem necessariamente ligadas também a crenças específicas com uma orientação religiosa e sabor ritual. Atitude semelhante foi tomada, muitos séculos depois, pela investigação figurativa de Pablo Picasso, que, através da explorada imagem simbólica do touro, quis aludir a significados mais profundos, visando sublinhar a poderosa e vital força bruta do mamífero, um tema que ele inequivocamente tomou emprestado precisamente da arte rupestre, tanto que o próprio mestre declarou como “o homem moderno não tinha realmente inventado nada de novo...
Pierre Soulages: sinais tangíveis da existência humana
A arte rupestre também influenciou as características estilísticas de Soulages, pintor e gravador francês nascido em 1919, que ficou fascinado pelos sinais realistas e também abstratos deixados nas cavernas pelos nossos antepassados, nos quais reconheceu a manifestação concreta de uma desejo forte e inato de se expressar, capaz, segundo ele, de fazer o ser humano se aventurar na escuridão das cavernas! Justamente o que foi dito é reproposto pela arte do mestre em questão, que geralmente se expressa através da criação de sulcos deixados na superfície da tela, suporte geralmente preto, ao qual a luz impõe com sua presença profundidade, reflexos e sombras, prontos para variar de acordo com o ângulo de observação. O espectador parecerá assim entrar nas cavernas escuras acima mencionadas, local onde apenas as lanternas poderiam dar a conhecer todas as mensagens simbólicas deixadas pelo homem.
Banksy: superfícies prontas para mudar com o tempo
O que a arte rupestre e a arte de rua têm em comum? Fácil: o meio deste último, bem como a sua variabilidade, na medida em que as paredes, sejam elas de cidades ou de cavernas, podem estar sujeitas a transformações, ditadas por fatores naturais, bem como pela própria atividade modificadora do homem. Ao contrário da primeira forma de expressão, porém, esta última, juntamente com os seus significados simbólicos, é desaprovada pelas autoridades, tanto que, como sabemos, é frequentemente contestada e censurada nas suas manifestações. Na realidade, porém, o tão temido graffiti poderia ser entendido como uma extensão da arte rupestre, na medida em que também foi criado na tentativa de compreender e sintetizar o mundo externo. Nesse sentido, é bem conhecido como o próprio Banksy argumenta que, se a nossa civilização fosse destruída, as gerações futuras poderiam montar a vida do século XXI usando os próprios rabiscos nas paredes do metrô. Provavelmente para dar continuidade a esse pensamento, o artista criou Cave Painting Removal (2008), mural que retrata um funcionário municipal, empenhado em limpar uma parede coberta de desenhos inspirados nos das cavernas de Lascaux (França), arte pré-histórica de valor inestimável, que, da mesma forma que o graffiti, é hoje considerado um ato de vandalismo a ser removido.
"RÊVERIE RUPESTRE UN" (2022)Pintura de Claude-Yvan Conne.
Memórias da arte rupestre (2018)Pintura de Lefolhub.
Lefolhub: memórias da arte rupestre
Os mestres acima mencionados, inquestionavelmente apaixonados pela arte rupestre, certamente deveriam estar familiarizados com o exemplar mais conhecido do género, ao qual os estilos a óleo de Lefolhub também parecem referir-se claramente. Refiro-me às pinturas das Cavernas de Lascaux (França), um complexo de cavernas onde existem obras de arte mural que datam do Paleolítico Superior, retratando principalmente três categorias de temas: animais, figuras humanas e signos abstratos, que, novamente em total afinidade com As memórias da arte rupestre também excluem alusões a imagens, visando captar a paisagem envolvente e a sua vegetação. Outros pontos em comum são igualmente encontrados nas escolhas de cores apresentadas pelo artista de Artmajeur, que optou pelo uso do preto pré-histórico, do amarelo e do vermelho. Tudo parece bastante claro e consistente até lermos a descrição do próprio artista das memórias da arte rupestre, já que o pintor admite que quis inspirar-se na vida pastoral e nas cenas de caça do Sahara. Este local distante da referida França remete-nos para a menos popular, mas igualmente notável, arte rupestre do Sahara Central, que, datada de numerosos períodos que se iniciam há cerca de 12.000 anos, mostra a cultura das antigas sociedades africanas, manifestando-se em obras de arte esculpida ou pintada em rochas naturais. Entre os muitos exemplos em questão, nos quais Lefolhub pode realmente ter se inspirado, está certamente o da Caverna das Bestas, um enorme abrigo rochoso natural, que, localizado no Deserto Ocidental do Egito, foi decorado com pinturas rupestres neolíticas que datam de mais de 7.000 anos, que contém mais de 5.000 figuras pintadas com pigmentos vermelhos, amarelos, brancos e pretos, muitas das quais foram intencionalmente desfiguradas em tempos pré-históricos.
Primeira arte rupestre (2019)Pintura de Michael Peddio.
Michael Peddio: Primeira arte rupestre
Cores vivas e gotejamentos, provavelmente emprestados da instintualidade da action painting, repropõem sua primordialidade ao encontro com o mundo animal, representado por meio de silhuetas simples, habilmente trabalhadas para remeter, como diz o título, às primeiras obras de arte em história humana: pinturas rupestres. Esta descrição leva-nos a continuar a narrativa iniciada e interrompida acima, que, no que diz respeito à união arte rupestre-arte contemporânea, se refere aos mestres modernos, que reaproveitaram deliberadamente características ou ideais estilísticos pré-históricos, como, entre outros, também Thomas Hirschhorn, autor de Lustre com as mãos (2006), escultura em que grandes formas presas a uma estrutura de madeira personificam o alimento, cuja busca foi certamente a atividade principal do homem primitivo. Estas espécies de "peitos de frango" foram concebidas suspensas no solo precisamente para serem salvaguardadas, ou seja, conservadas para consumo posterior, ao mesmo tempo que são acompanhadas por algumas mãos, destinadas a simbolizar aqueles indivíduos que em tempos já há muito tempo deixaram suas pegadas nas paredes da caverna. Neste ponto entra em cena a arte de Joseph Beuys, que, como nem todos sabem, também abordou a arte rupestre através da criação de algumas aquarelas nas quais, como na arte rupestre, a figura do homem não é o tema único ou principal, um facto que o distancia drasticamente das investigações figurativas “humanistas” que o seguiram. Seguindo esse propósito, Beuys pintou animais em tons alaranjados, lembrando a arte rupestre, imortalizando-os junto com as pessoas sem qualquer diferenciação.
Bison (2020)Pintura de Elisabeth Pierret.
Elisabeth Pierret: Bisão
Sobre um fundo abstrato com sabores terrosos mas celestiais, a silhueta pesada, embora aparentemente leve e sintética, de um bisão, tema extremamente recorrente na investigação figurativa da arte rupestre, impõe-se, como que suspensa entre o reino das nuvens e o da rochas. A popularidade deste animal ainda permanece obscura para os arqueólogos, que muitas vezes interpretam tal visão como simplesmente um desejo de documentar a realidade dos primeiros artistas da história da arte, embora seja fácil vincular a presença destes mamíferos, como a de outros, a rituais específicos ou práticas mágicas. Por outro lado, se decifrássemos o bisão referindo-nos à cultura nativa americana, que dá grande importância a este mamífero, ele seria considerado um animal totêmico, associado ao Wakan Tanka, ou ao Grande Espírito, uma divindade absoluta e sagrada. a todas as pessoas que, se apareciam em sonho, muitas vezes costumavam alertar sobre a chegada de um perigo iminente, enquanto quando eram contempladas após um ritual ou oração coletiva, serviam para indicar que o pedido em questão havia sido ouvido a conceder. Por fim, é bom salientar que o animal também encarnou o sobrenatural, na medida em que foi identificado como sendo capaz de dar vida para permitir a existência do ser humano, fazendo-nos refletir sobre o fato de que tudo na natureza está presente em abundância, apenas se o ser humano é capaz de respeitá-lo e aceitá-lo com autenticidade, isto é, sem pretensão, mas com gratidão.